Inspiração

Inspiração
No meu artigo sobre o processo criativo na escrita tive a preocupação de desmistificar o peso da inspiração na criação de histórias. Posso comparar o tempo de escrita com um momento que é simultaneamente chuvoso e soalheiro; umas vezes há inspiração e outras vezes não.
Aproveito este exemplo para vos falar da inspiração e o que ela representa para mim: é como uma luz que aclara o nosso caminho. Em certos momentos, que podiam ser de maior apreensão e incerteza, ela ilumina os escolhos do caminho, não nos deixando tropeçar facilmente. Mas esta é uma luz frágil que precisa de ser conservada em segurança, porque é através dela que vamos continuar a iluminar outras partes do percurso, sempre que ela não surja naturalmente.
Esta descrição parece ser demasiado abstrata e poética, mas para mim não existe melhor forma de descrever a inspiração. Apesar de não lhe atribuir todo o peso do processo criativo, certamente que ela é importante, pois dá-nos uma maior clarividência no caminho a seguir; isto, se soubermos tirar um bom partido dela.
Qual é a fonte da minha inspiração
Durante os últimos dez anos tenho viajado bastante, sobretudo por Portugal. Com o tempo, percebi que todos os locais e regiões que visitei têm sido uma fonte de inspiração muito importante para as minhas histórias. Mas não só.
Quanto mais viajo, melhor conheço as pessoas, sobretudo como se vive e como se viveu por esse país fora. É possível também fazer uma analogia com outros lugares do mundo. Numa dessas viagens, numa vila de xisto do distrito de Castelo Branco, uma das moradoras descreveu a vida difícil e dura dos seus habitantes no início do século XX. Na ausência das condições mais básicas de vida, comungavam dos mesmos espaços com os animais, entre homens, mulheres e crianças; e a roupa (produzida com tecidos mais grosseiros do que aqueles que existem hoje em dia), era lavada na água fria da ribeira, nos dias de inverno, até as mãos sangrarem. Depois, existia a fome. E a fome é o que traz as recordações mais amargas.
É possível sentir a dureza destas vidas e ver as lágrimas de quem conta estas histórias de sacrifício, num país ainda com muitas carências, onde a falta de certos produtos só conseguia ser compensada através do contrabando que se fazia com Espanha. Viajar significa isto: ouvir as histórias dos outros e deixarmo-nos inspirar por elas.
Este é apenas um caso que me marcou, entre tantos anos de viagem, num tempo pré-pandemia, em que ainda não existiam restrições na forma como abordávamos as pessoas. Vi as suas lágrimas ao contarem as histórias de vida, dos pais, avós, e a dificuldade de muitos outros em conseguirem subsistir em regiões isoladas e de grande pobreza. A primeira fotografia é da aldeia de xisto Martim Branco.



Vou depois buscar inspiração à imaginação e criatividade das pessoas. É o caso, por exemplo, de igrejas transformadas em livrarias, como em Óbidos (na segunda fotografia). Embora de forma fortuita com outras funções menos nobres no passado, fruto das circunstâncias políticas, como é que nunca se pensou antes em vender livros numa igreja?
Como bem sabemos, em séculos anteriores estes espaços tinham também uma função de socialização. Veja-se o exemplo da igreja de Santa Maria da Devesa (terceira fotografia), em Castelo de Vide. De dimensões extraordinárias para o atual número de habitantes, é todavia um importante testemunho de uma época em que a numerosa comunidade local tinha naquele sítio um espaço privilegiado não só de recolhimento e oração, mas também de convivialidade e mercado. Perto deste local marcante existe também uma estátua erigida em honra do Rei D. Pedro V, sinal de agradecimento pela visita do monarca no dia 7 de outubro de 1861. Apesar de uma breve visita, a população, habituada ao esquecimento, ficou reconhecida pelo gesto.
São estas viagens e experiências que me trazem inspiração. Quando não for possível cruzar fronteiras, a leitura é e será sempre a melhor forma de ouvir outras vozes.